Tuesday, June 28, 2005

D4: A aula e o aluno

Epígrafe:
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"Se a tagente de um ângulo coincidir com o seu cosseno, então o seno desse mesmo ângulo será o número dourado."
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Nessa manhã acordei talvez mais feliz do que eu teria, digamos, o "direito" de estar. Preparei meu café alegre e deixei um bilhete em tinta vermelha para a Grazi, minha colega de apartamento. "Que pena que você não pôde ir visitar a maridagem conosco ontem. O café está pronto, está na garrafa branca. Tenha um bom dia!". Um dos grandes prazeres do bom - humor é esse: contagiar os outros com os seus consequentes gestos significantes e espontãneos.

Quando cheguei no trabalho, os alunos me cobraram: "Professor, o senhor tem que resolver aquela equação trigonométrica da aula passada. Nós não conseguimos chegar numa única resposta. Há várias respostas e elas são muito difíceis de se expressar". Na verdade, os alunos estavam indignados que eu tivesse passado para eles uma equação que eles não sabiam resolver e que ainda por cima, conforme eles mesmos perceberam sozinhos, a equação nem sequer possuía uma resposta específica. Os alunos pareciam ultrajados com isso.

- Fico muito feliz que vocês tenham se dedicado a resolver aquela equação. - eu respondi e depois continuei - Aliás, eu quero que vocês percebam que eu sequer precisei verificar seus resultados numéricos para que eu ficasse satisfeito. Isso que vocês acabaram de me contar já me deixou a certeza de que a equação que vocês levaram para casa cumpriu seu objetivo: vocês enfretaram a equação e a equação fez vocês pensarem. É claro que a resposta da equação tem sua importância própria, mesmo porque no próximo semestre vocês vão prestar concursos que exigirão resultados de vocês. Mas percebam também a importância do processo e não apenas o do resultado.

Depois eu expliquei a eles que aquela equação possuía, sim, uma quantidade infinita de soluções, embora as soluções fossem precisas e que, na verdade, as soluções eram cíclicas. Então eu ensinei a eles primeiro a estabelecer os limites da equação, caso eles quisessem expressar uma solução única, ao invés de terem de se dar ao trabalho de pensarem nas soluções infinitas. Depois eu resolvi a equação, que era a seguinte:

tg x = cos x

Fiz questão de a escrever, para que o leitor pudesse contemplar sua simplicidade. Não, não é preciso pensar nela. Apenas olhe o quanto ela é pequenina. Nem parece que ela guarda dentro de si um par de números de ouro. Eu mesmo quando preparei essa aula pela primeira vez, fiquei surpreso e admirado quando os encontrei.

Depois que eu transformei aquela equação estranha numa equação de II grau e a resolvi por Báscara, eu tive aquele gosto que o professor tem de ver os alunos admirados de ver aquele truque que parecia mágica. Mas a mágica maior era essa: a de que não era mágica, mas sim Lógica. O processo na verdade era simples, mas claro, não para estudantes que o estivesse conhecendo pela primeira vez. Todo passarinho voa, mas voar pela primeira vez é sempre um suplício. Por mais que as andorinhas sejam lindas voando numa manhã fresca, seus suplícios um dia foram necessários.

O resultado daquela equação é um número, a princípio feio, um número esquisito, com uma raiz quadrada irredutível, sim parecia feio mesmo... E ainda por cima dentro de uma fração. Eu já havia dado aquela aula n'outra turma antes. E eu rapidamente havia passado para o exercício seguinte. Para mim, eu sabia, aquele número era muito especial. Para os alunos não: era apenas o resultado do exercício, a sua lápide. O decreto de que aquele exercício estava encerrado e poderíamos passar para a explicação seguinte. Afinal de contas, o mundo está globalizado. (Sim, a globalização chega na sala de aula, sim.)

Na aula que eu havia dado na outra turma, é verdade, o conteúdo era o mesmo. Assim, como a Matemática também era a mesma. Mas aquela aula de agora era um agora diferente. Meu humor estava diferente, como o fora também aquele café que eu havia feito pela manhã. E naquela aula eu tive vontade de fazer algo que eu não fizera na aula do dia anterior: aquele número tosco de giz branco na lousa, eu resolvi ensinar aos alunos a enxergarem-no dourado, exatamente como eu o via e que até então era um segredo meu.

- Gente - eu parei de escrever e comecei a dizer a eles - deixa eu lhes contar uma coisa, por acaso esse resultado que apareceu aí, de forma inesperada nesse exercício, não se trata de uma resposta qualquer, mas se trata de um velho conhecido dos artistas e dos matemáticos, um número que na Grécia clássica era conhecido como o "número do belo" e na Renascença era chamado de "A Divina Proporção". Eu não sei por que ele resolveu aparecer aqui nesse exercício, mas...

E eu fiz uma rápida explicação do que aquele número era e depois segui a aula, aquela explicação não poderia mesmo tomar o espaço que eu gostaria, pois ela não é exigida no mercado de trabalho. Mas talvez eu tenha dado alguma contribuição para manter o número de ouro ainda vivo. Vivo e dourado. E não apenas um giz escrito num branco qualquer, esquecido e depois apagado num quadro negro.

Mas o contágio que o número de ouro estava radiante em mim nesse dia, ainda iria ganhar proporções divinas e que eu não imaginava: um aluno tirou de sua mochila uma revista maçônica, nela havia várias reportagens interessantes. Uma delas era sobre o número áureo e com um requinte matemático: várias equações ali estampadas e inclusive algumas figuras geométricas lindas, que dava vontade de estampar numa camiseta. Dentre elas, as mais impressionantes de todas: equações e geometrias revelando a presença do número áureo, sob os mais diversos aspectos, na construção da antiquíssima pirâmide egípcia de Queops. A arquitetura da pirâmide possuía informações muito profundas de Astronomia, que a matéria apenas esboçava, mas que eu jamais imaginei (sequer sonhei!) que aquele povo poderia possuir naquela época.

Naquele momento quem era o aluno e quem era o professor? Para um número cujo brilho ataravessou tantos milênios essa questão parecia irrelevante. Se não tivesse lançado aquele "pirlim - pim - pim" dourado sobre o giz branco da lousa, certamente o aluno não se sentiria motivado a me mostrar a tal revista que fez dentro de mim, o professor, algo fundamental para o aprendizado: ampliou meu horizonte de ignorância. Depois de contemplar aquelas informações astronômicas, eu percebi que eu realmente não faço idéia de quem era aquela gente que viveu no Egito e que certamente eles têm muito mais matemática para me ensinar do que eu poderia supor.

É claro que a conversa entre professor e aluno, agora dois apaixonados pelo número dourado, teve de continuar fora de sala de aula. Mas é curioso como informações de que precisamos nos vem das formas mais inesperadas e, às vezes, graças ao brilho de um dia bem humorado, tal como se canta na voz de Geddy Lee: Begin the day with a friendly voice...

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